“No ano Laurentino Gomes, no seu ótimo livro “1822”
(Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010), já introduz sua história da
independência afirmando que o país não anda bem das pernas desde o nascimento:
de sua independência, o Brasil tinha, de fato, tudo para dar
errado. De cada três brasileiros, dois eram escravos, negros forros, mulatos,
índios ou mestiços. Era uma população pobre e carente de tudo, que vivia à
margem de qualquer oportunidade em uma economia agrária e rudimentar, dominada
pelo latifúndio e pelo tráfico negreiro. O medo de uma rebelião de cativos
assombrava a minoria branca. O analfabetismo era geral. De cada dez pessoas só
uma sabia ler e escrever” (pp. 17-18).
Se é verdade que o Brasil andava mal, não é menos verdade que
ainda hoje a situação continua difícil. Em 1888, a Princesa Isabel pôs fim a
uma chaga na sociedade brasileira: a escravidão; mas a cultura escravagista
governamental permaneceu. Com efeito, ainda que a Lei Áurea tenha libertado os
escravos, como há tanto tempo exigiam os abolicionistas brasileiros (D. Pedro
I, o Proclamador da Independência, era um abolicionista convicto), o
escravagismo permaneceu como norma orientadora da ação do Estado Brasileiro em
suas sucessivas mutações.
O Brasil não possui uma cultura de liberdade. Governos
autoritários que emanam leis autoritárias têm se sucedido continuamente e o
povo brasileiro continua sem desfrutar “oficialmente” do que seja uma liberdade
reconhecida por lei.
Há um medo generalizado, assumido e propagado governo após
governo, de que os brasileiros sejam livres e de que cuidem de sua vida sem os
olhos firmes do Poder Oficial a observar-lhes. Os brasileiros são tidos como
crianças que não sabem se cuidar e que, por isso, não podem ser livres para
administrar seus próprios negócios e vidas. Adota-se a idéia de que nossa
sociedade ainda não é madura, ou de que nosso povo “não tem suficiente
educação”, e isso é utilizado como pretexto para justificar-se um autoritarismo
disfarçado de compaixão pelo “povo imaturo e inculto”. A mesma justificativa,
aliás, utilizada pelos escravagistas de todas as épocas, inclusive os
brasileiros: os escravos não poderiam viver bem sozinhos, morreriam se fossem
libertos e caminhassem distantes dos olhos de seus proprietários, motivo pelo
qual a escravidão era a única maneira, a maneira mais compassiva e
misericordiosa, de garantir-lhes a vida.
Hoje continua entre governantes e legisladores a noção de
que, pela imaturidade do povo, o governo deve controlar suas ações, registrar e
observar cuidadosamente tudo o que fazem, regulando cada momento de suas vidas.
Chega-se ao ponto de o brasileiro ser interpretado como alguém sem existência,
caso o governo não o reconheça – tempos atrás esta noção estava expressamente
dita em uma propaganda oficial do Governo Brasileiro em prol de registrar as
crianças, em que um bonequinho cantava que “eu tenho nome! E quem não tem? Sem
documento eu não sou ninguém”,
como se a própria existência da pessoa fosse conferida pelo Estado.
A mentalidade escravagista que permanece entre nossos
governantes se reflete nas leis que emanam do Poder Legislativo e que são
sancionadas pelo Executivo, sem sofrerem, em seguida, qualquer controle de
constitucionalidade por parte do Poder Judiciário, também ele acometido pela
mesma mentalidade.
Por exemplo, o Estatuto do Desarmamento – apesar do Referendo
– privou os brasileiros do direito à legítima defesa e, assim, privou-lhes do
próprio direito à vida, que deveria ser assegurado a todos. Os brasileiros de
bem, desarmados, ficam à mercê dos bandidos, que agora têm segurança para
assaltar e praticar os piores crimes, cientes de que ninguém está armado para
poder se defender. Os frutos do Estatuto do Desarmamento são o aumento da
criminalidade e a destruição da liberdade dos cidadãos, que estão presos em
casa enquanto os bandidos estão soltos na rua (isto quando não invadem casas
também), portando armas ilegais. Afinal, bandido não compra arma no mercado
legal, que foi o que esta lei destruiu.
Mas qual é o princípio do Estatuto do Desarmamento? É o
princípio de que os brasileiros não conseguirão ter controle sobre si mesmos
para usar armas. Diz-se até mesmo que nos Estados Unidos e na Suíça o porte de
armas funciona porque “o povo tem educação”, mas aqui não. Aqui seria preciso
controle do Estado. É o medo da liberdade, medo de que os brasileiros sejam
livres.
Outra lei que expressa a mesma tendência – na verdade, um
ordenamento inteiro – é a tributária. O Brasil tem impostos instituídos sobre praticamente
todas as coisas. Não há atividade ou bem que escape dos olhos gananciosos do
governo. Hoje os brasileiros trabalham algo em torno de cinco meses ao ano para
pagar tributos ao governo e a Administração continua sendo ineficiente, não
prestando a contrapartida devida.
A idéia norteadora do excesso de tributos no país é a de que
os brasileiros não saberiam cuidar dos seus próprios bens. Assim, o governo
precisa tomar uma parte deles, para administrá-los em prol do bem comum,
prestando serviços que, segundo o governo, os cidadãos também não saberiam
prestar sozinhos, como, por exemplo, a extração de petróleo e a distribuição de
cartas – ainda que não esteja muito claro porque raios só o governo está
capacitado para atuar com o petróleo e as cartas, quando a experiência em
diversos lugares do mundo mostra que as empresas privadas prestam este serviço
de forma mais eficiente.
O medo da liberdade é expresso no verdadeiro confisco de bens
dos brasileiros que o governo realiza por meio de tributos para manter o
monopólio de atividades que, segundo ele, os particulares não poderiam
desempenhar se estivessem livres. É o governo cuidando do povo… mas tudo tem
mostrado que a ineficiência reina, o gasto público é enorme, e que o dinheiro
retirado aos montes do povo brasileiro em uma das maiores cargas tributárias do
mundo não tem nenhum retorno e estaria sendo melhor administrado pelo próprio
povo. Afinal, todo mundo sabe melhor de suas necessidades e o que fazer com o
seu próprio dinheiro.
Sem propriedade, com metade dos bens espoliados, com dinheiro
sendo confiscado, o brasileiro praticamente só recebe salário para comer e
viver sob um teto – e olhe lá. Não tem dinheiro para lazer, para sair com os
amigos, para comprar um livro e investir em sua educação. Com isso, não tem
liberdade, não pode melhorar suas próprias condições senão às custas de muito
sacrifício. Nos fins de semana se vê preso em casa porque não tem um tostão
furado para sair e jantar com a família. Isso é liberdade? Trabalhar só para
comer? (E olhe lá!, repito) Se é liberdade, então estamos no mesmo patamar dos
escravos negros, que também trabalhavam e comiam. Talvez um novo movimento
abolicionista seja necessário.
Um último exemplo do medo da liberdade é o próprio sistema
eleitoral brasileiro. Este sistema impede o surgimento de novas lideranças e
privilegia quem já está no poder. Basta perceber que as pequenas legendas, sem
muita capacidade de fazer alianças, são as que têm menor tempo na propaganda
eleitoral, enquanto as “legendas de sempre”, as maiores, com muitas alianças
porque já estão no poder, ocupam quase o horário inteiro. Isto é, quem mais
precisa expor suas idéias não tem como falar delas, porque o sistema não deixa,
e quem já detém o poder na mão domina toda a eleição. O sistema favorece os
grandes e destrói os pequenos, impede as mudanças e veda as novidades – o velho
é a regra. Com um sistema eleitoral destes, não admira que cada vez mais as
pesquisas apontem que nenhum brasileiro se sente representado por partido
político algum e que o número de votos nulos e abstenções cresça sempre mais.
Aliás, não estranha que em uma democracia, que preze pela “liberdade política”,
o voto seja obrigatório?
Que o sistema permita a escolha livre dos representantes mas não permita a
escolha livre sobre votar ou não? A liberdade política não é lá o forte do
Brasil… Aliás, vez ou outra algum atentado contra esta liberdade perpassa nossa
história: é um regime ditatorial, é uma lei proibitiva, é um governante que não
gosta muito de que falem dele…
Temeroso. Essa é a atitude do Brasil frente à liberdade.
Temeroso de ver seu povo livre e independente. Em 1822 surgiu um país que tinha
tudo para dar errado. Hoje esse país continua cheio de escravos, sem liberdade,
sem independência. Talvez por isso o Brasil seja o eterno “país do futuro”. No
presente, as coisas nunca parecem estar bem por aqui.
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