A usina de Belo Monte, ainda em processo de construção, já gerou
enormes impactos em Altamira e certamente é um dos grandes símbolos do
desenvolvimentismo lulista, que agora agoniza pelos quatro costados. No
entanto, seu rastro de destruição e atropelos deixará marcas eternas na pele
dos afetados, que desde os anos 80 resistem ao megaprojeto hidrelétrico.
Antônia Melo, militante de longa data contra Belo Monte, acabou de perder sua
casa para a truculência do “Consórcio Construtor Lava Jato” e concedeu uma entrevista
carregada de emoção ao Correio da Cidadania.
“Praticamente não podemos sair na rua à noite, a criminalidade e
a violência estão muito altas, mais de 100 mil pessoas chegaram à cidade por
causa do empreendimento, de maneira que a cidade está inchada, os serviços
públicos não dão conta da demanda, não foram criadas estruturas pra receber a
grande população que veio. Os órgãos de segurança, justiça, educação pioraram,
há muita evasão escolar, já que muitas crianças tiveram de mudar pra
assentamentos distantes da cidade e ficaram sem escola, posto de saúde...”,
enumerou, numa lista de prejuízos que, dado o histórico, é de se duvidar que
sejam reparados
Para além das mazelas já verificáveis, Antônia atacou toda a
teia de corrupção público-privada, grande assunto nacional de 2015, e reiterou
todo o jogo que passa ao largo dos interesses da população e diz muito mais
respeito a projetos de poder. Além disso, criticou a falta de consciência
ambiental dos que argumentam em favor da obra, exatamente quando governos do
mundo inteiro se reúnem em Paris para mais uma tentativa de contenção das
sequelas de um modelo econômico sabidamente predatório ao meio ambiente.
“A energia não vai servir a nós. Essa usina só nos destrói e
arranca nosso couro. É um projeto à base de propina e garantia de vitórias
eleitorais desses governos, de PT, PMDB, PSDB, o diabo que seja. Pra isso que
servem. Entregam nossa vida, nossos recursos naturais, acabam com tudo pra
ganharem dinheiro dessas empresas em suas campanhas, ainda por cima por meio de
BNDES e do Tesouro, e se manterem no poder. Não é nada pro povo. E a população
tem de saber, especialmente do Sul e Sudeste, que já estamos no Século 21, no
qual o grande assunto é o meio ambiente”, afirmou.
Por fim, mas não menos marcante, fez um implacável ataque ao que
se tornou o Partido dos Trabalhadores, o qual ela própria ajudou a fundar na
cidade, inclusive sendo candidata em tempos tão longínquos quanto mais
esperançosos. Agora, resta a decepção, a destruição e uma vida a ser
reorganizada. Ainda assim, destacou que a luta contra a usina continua.
“Entraram no poder pra fazer igual ou pior que todos. O que
dizer? Belo Monte é um total desrespeito conosco, fomos tratados como meros
objetos descartáveis. O PT teve tudo pra fazer a diferença, mas não fez. Foi
tudo ao contrário. E agora temos um país em crise, com uma situação de dívidas
e tudo mais. Taparam o sol com a peneira pra aproveitar o poder, pegar dinheiro
que não era deles... Não tem perdão, não tem perdão”, desabafou a líder do
Movimento Xingu Vivo Para Sempre.
A entrevista completa com Antônia Melo, gravada nos estúdios da
webrádio Central3, pode ser lida na íntegra a seguir.
Correio da Cidadania: Primeiramente, o que você pode nos contar
do episódio que marcou a perda da sua casa?
Antônia Melo: É
uma situação que já vinha mexendo com minha vida há muito tempo, até que fui
expulsa de casa. Mas precisamos nos manter firmes pra enfrentar todo o processo
comandado pela Norte Energia. Morava num bairro que as empresas consideram
periférico, mas na verdade é perto de tudo no centro da cidade de Altamira,
perto de todos os serviços necessários. Não precisava pagar transporte para me
locomover a bancos, igreja, escola, hospital, comércio, enfim, sempre tive tudo
perto da casa onde morei mais de 30 anos.
Porém, a área é considerada de risco pela hidrelétrica, passível
de alagamento. Mas pode não ser. O empreendimento de Belo Monte é muito obscuro
e acima de tudo muito criminoso. A sociedade não teve informações corretas,
quando se procuravam os funcionários só nos diziam que o chefe que sabia... A
negação de informações à população foi das coisas mais criminosas, ainda mais
por eu estar à frente do Movimento Xingu Vivo Para Sempre, que tem uma história
de 30 anos de lutas ao lado de movimentos da região contra tais tipos de
empreendimentos, desde os anos 80, quando se chamaria Usina Kararaô.
É um projeto que vem da ditadura militar e hoje é imposto,
conduzido e implantado com resquícios de ditadura: as pessoas não têm direito
de falar, não têm voz nem vez. Isso dentro de uma mascarada democracia. As
pessoas falam, falam, mas não são escutadas. Servem apenas pra cumprir
cronogramas do governo.
É um processo muito grave, triste e criminoso contra os modos de
vida, os direitos humanos e ambientais das pessoas que habitavam a região,
sendo todos obrigados a sair. Agora constroem pontes, aterros, parques... Pra
quem? Não vai alagar? Se não vai, por que nos tiraram? Um funcionário da obra
questionou uma vizinha:
- Por que não saiu daqui?
- Porque disseram que não preciso sair.
- Mas precisamos limpar aqui.
Ou seja, fomos tratados como lixo. É uma limpeza social. Se não
vai alagar a área, só nos tiraram com a finalidade de limpá-la. É tudo muito
criminoso, chocante e indignante.
Correio da Cidadania: O que é a vida em Altamira nos últimos
anos, após a chegada da obra? O que você imagina para o futuro da cidade?
Antônia Melo: Temos
tentado explicar à população através de realidades de outas barragens, como
Tucuruí, que fica aqui na nossa porta, na região transamazônica. Já há muito
tempo erguemos a bandeira de combate à usina. Hoje dizem pra nós: “eu era feliz
e não sabia”.
Somos o polo de uma região de 11 municípios em volta da BR-230
Transamazônica, sempre com movimento social forte e unido em diversas questões,
a exemplo de moradia, escola, saúde, transporte, crédito pra agricultores,
criação de universidades... Se temos tudo isso em Altamira foi pela enorme luta
do movimento social, com trabalhadores e trabalhadores brigando juntos. As
melhorias em saúde, educação, segurança, sistema de justiça se deram pela nossa
luta. E sempre tendo nosso rio, nossos peixes, a coisa linda que era o Xingu,
rodeado de ilhas, sem degradação, tudo bem cuidado. Os indígenas viviam em suas
aldeias, cuidavam de sua cultura e de toda essa vida.
Agora chegou o empreendimento, com grande propaganda do governo
federal, que sabia dos 30 anos de luta. As empresas, e também o governo,
fizeram um lobby muito bem feito, de seduzir e enganar o comércio, empresários
da região... Tudo mentira, mas as pessoas se iludiram com propaganda, dinheiro
etc. Foi um cala-boca, que chegou a gerar uma divisão muito grande entre povos
indígenas e movimentos sociais, porque parte desses movimentos é do PT e foi
obrigada a ficar calada e aceitar o projeto, sem se juntar à oposição.
É um crime lesa-pátria e lesa-consciência. Tínhamos nossa
produção, somos uma região muito rica em peixes, cacau e também madeira, que
vive sendo roubada, além de outros produtos florestais. Infelizmente, a
pecuária também é grande aqui e já causou muito desmatamento. Mas nós, os
índios, os ribeirinhos e a população da cidade tínhamos uma vida de paz em
relação a hoje.
Agora, praticamente não podemos sair na rua à noite, a
criminalidade e a violência estão muito altas, mais de 100 mil pessoas chegaram
à cidade por causa do empreendimento, de maneira que a cidade está inchada, os
serviços públicos não dão conta da demanda, não foram criadas estruturas pra
receber a grande demanda de população que veio. Os órgãos de segurança,
justiça, educação pioraram, há muita evasão escolar, já que muitas crianças
tiveram de mudar pra assentamentos distantes da cidade e ficaram sem escola,
posto de saúde...
As famílias foram jogadas para lugares onde quase não existem
serviços. Agora temos a criminalidade, prostituição infantil, violência contra
as mulheres e a destruição sem precedente do nosso rio, deixando nossos
pescadores sem peixes. E muitas categorias, como pescadores e barqueiros, não
têm sido reconhecidas pela empresa como impactadas. As pessoas perdem sua vida
e sobrevivência, que girava em torno do rio, são jogadas fora sem direito a
nada e têm suas casas queimadas.
O MP e Ibama mandaram a empresa suspender a retirada de famílias
ribeirinhas, e mesmo assim a Norte Energia não obedeceu, tirou as famílias sem
pagar quase nada e queimou casas.
A cidade está desfigurada, estão aterrando a beira do rio e suas
praias, tudo sem consultar a população, que não pode dizer nada, ser ouvida,
vista e, acima de tudo, respeitada em seu dia a dia. Com Belo Monte e tais
empreendimentos a lei do país não tem nenhum valor. O governo empodera as
empresas, que tomam conta de tudo na nossa vida, e ainda temos a infelicidade
de o sistema judiciário do Brasil estar a favor e ao lado desses crimes,
concedendo liminares para que o projeto continue.
Correio da Cidadania: Como recebeu a notícia da negação da
Licença de Operação da usina? Muda alguma coisa a essa altura?
Antônia Melo: Não
damos mais nenhuma credibilidade ao governo e ao Ibama, que se tornou um órgão
que meramente assina liminares criminosas contra os direitos da população e a
lei de licenças ambientais do país. A notícia pode ser boa, nos deixou
contentes, no sentido de que não fizeram nada mais que a obrigação para
limparem um pouco a própria barra com a população daqui. Porque a omissão,
negligência e conivência do Ibama com tudo que vimos aqui são imensuráveis.
Foi o mínimo de obrigação do órgão licenciador e acima de tudo
fiscalizador – coisa inexistente nos últimos anos. E só porque viram que existe
muita pressão. Nós dos movimentos sociais, do MP Federal e outras organizações,
como a Corte Interamericana e a Comissão de Direitos Humanos da ONU, temos
ações e denúncias de irregularidades e violações de direitos humanos.
Belo Monte é tão perverso que vimos aqui na região deputados
eleitos virarem as costas pra gente e apoiar o governo e esses crimes. Ficamos
sem representação política, porque ninguém queria contrariar Belo Monte e
desagradar governo e empresas. Só um deputado estadual do Pará, na Comissão da
Amazônia, tentou fazer alguma coisa, mas sozinho. Ele promoveu uma audiência
com as autoridades na câmara federal no mês de agosto, na qual estavam Ibama,
autoridades, empresas, e causou bastante impacto.
Tivemos reuniões com a presidência do Ibama em Brasília e Belém,
na qual participamos e entregamos um calhamaço de denúncias sobre o que ocorre
aqui. Portanto, seria muita cara de pau que a presidente do Ibama assinasse a
Licença de Operação com tamanha quantidade de denúncias que recebeu. Depois, o
Ibama estabeleceu 12 pontos condicionantes para o consórcio regularizar, coisa
que não dá pra fazer em um ano, que versam, por exemplo, sobre a situação
precária dos indígenas que têm terras invadidas.
Mas sabemos que a qualquer hora vão assinar a licença, porque a
Dilma vai mandar, porque o governo tem compromisso com as empresas, que pagaram
todas as conhecidas propinas de campanha. O consórcio construtor, de quem
ninguém fala e tem o nome muito acobertado, é conformado também por órgãos do
governo, como a Eletrobrás, e financiado pelo BNDES, ou seja, pelo nosso
dinheiro. E as empresas privadas que fazem parte são todas denunciadas pela
Operação Lava Jato e já tiveram diretores presos.
Assim, dá pra ver bem que projeto é esse, o que tem por trás,
por todos os lados, em relação a Belo Monte. Nossa vida mudou pra muito pior, é
uma desilusão muito grande. Mesmo assim seguimos lutando, porque o modelo
implantado por governo e empresas pra Amazônia é uma desgraça. E se a população
do Sul e Sudeste não abrir os olhos e se voltar ao que acontece aqui na
Amazônia vamos todos pagar um preço muito alto e ser responsabilizados pelas
futuras gerações, como destruidores irresponsáveis.
Vamos escrever um livro pra gravar na memória das futuras
gerações quem destruiu o Xingu e a Amazônia, com nome e endereço de cada um.
(Nota da Redação: em 25 de novembro, após a realização desta
entrevista, o Ibama assinou a Licença de Operação, que permite ao consórcio
começar a encher de água o reservatório da usina).
Correio da Cidadania: Já que você menciona os habitantes do Sul
e Sudeste, o que pensa da argumentação de que a energia a ser gerada pela usina
é indispensável para o abastecimento energético do país?
Antônia Melo: Temos
orientação de especialistas da área energética e da universidade, e eles dizem
ser um horror, uma grande mentira. O Brasil não precisa de Belo Monte. Quem se
debruça sobre o projeto já vê o que governo diz às empresas: é uma das maiores
usinas do mundo, que vai gerar 11.000 megawatts (MW) de energia. Mas isso é o
lobby. Ao mesmo tempo, diz que vai gerar 4.000 MW de energia firme. Pra um
empreendimento que custa mais de 30 bilhões de reais de dinheiro público, entre
Tesouro e BNDES, gerar só isso de energia firme é inviável.
No entanto, é um projeto pessoal do Lula, que sempre disse que
ninguém nunca teve coragem de levar a ideia adiante, enfrentar os índios e
oposições, e a usina seria feita de qualquer jeito. É o que está acontecendo. O
Brasil não precisa de Belo Monte, tem energia de sobra. Especialistas dizem que
15% da energia gerada é desperdiçada na distribuição, cujas estruturas são
obsoletas e arcaicas.
Além de tudo, para nós do estado do Pará, e Altamira
especificamente, estamos pagando a energia mais cara do país, e de péssima
qualidade. Portanto, a energia não vai servir a nós. Essa usina só nos destrói
e arranca nosso couro. Deixamos de comer pra pagar energia. É um projeto à base
de propina e garantia de vitórias eleitorais desses governos, de PT, PMDB,
PSDB, o diabo que seja. Pra isso que servem.
Entregam nossa vida, nossos recursos naturais, acabam com tudo
pra ganharem dinheiro dessas empresas em suas campanhas, ainda por cima por
meio de BNDES e do Tesouro, e se manterem no poder. Não é nada pro povo. E a
população tem de saber, especialmente do Sul e Sudeste, que já estamos no
século 21, no qual o grande assunto é o meio ambiente. Temos a Conferência de
Paris, todos pensam e clamam pela melhoria das condições ambientais, e vemos os
governos fazendo todas as tramoias apenas pra se manterem no poder.
Sem falar de outras fontes de energia, como a solar. Na região
Norte, é uma coisa tremenda o sol, a situação climática está muito ruim, o
calor está imenso. São os resultados de Belo Monte aparecendo. Já tivemos
muitas queimadas de árvores e ilhas do Xingu, e o governo, questionado pela
BBC, vem afirmar que Belo Monte tem suas falhas, mas não vai abrir mão das
hidrelétricas na Amazônia.
Assim, se os povos de tais regiões não pararem de consumir,
consumir e consumir, como uma doença, sem se dar conta de que por trás disso
tem muito suor, sangue e morte, nosso futuro fica mais obscuro, tanto do Brasil
quanto de toda a humanidade.
Correio da Cidadania: Você fundou o PT em Altamira. Como enxerga
o partido hoje em dia, em especial diante da atual crise que praticamente deixa
o governo Dilma de mãos atadas? Que balanço você faz dos 13 anos de governos
petistas e do processo político conhecido pelo nome de lulismo?
Antônia Melo: De
fato, participei da fundação do PT em Altamira, fui filiada, candidata pelo
partido três vezes, sem dinheiro nenhum, apenas pra ajudá-lo a crescer. Por
assim dizer, me lasquei, com todo esse sofrimento, acreditando ser uma saída
para a melhoria ao país, com mais respeito pelas pessoas. Conseguimos construir
o partido, eleger vários deputados, realmente houve um grande crescimento. Pra
depois chegarem no poder e praticarem toda essa covardia. E agora convivemos
com as denúncias da Operação Lava Jato... Quer dizer, entraram no poder pra
fazer igual ou pior que todos. O que dizer?
Foi uma grande traição, não suporto mais, não acredito mais no
partido de maneira nenhuma. Sou veementemente contra o PT, exatamente porque
fui enganada, traída e não tolero mais. Por isso me desfiliei e critico
bastante mesmo tudo que vejo de errado. Belo Monte é um total desrespeito
conosco, fomos tratados como meros objetos descartáveis.
O PT teve tudo pra fazer a diferença, mas não fez. Foi tudo ao
contrário. E agora temos um país em crise, com uma situação de dívidas e tudo
mais. Taparam o sol com a peneira pra aproveitar o poder, pegar dinheiro que
não era deles... Não tem perdão, não tem perdão.
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