Está em curso um projeto de entrega dos
principais ativos produtivos do Brasil ao capital estrangeiro. É bem verdade
que os donos da riqueza financeira internacional estão satisfeitos com os
ganhos que o rentismo brasileiro tem proporcionado, mas sabem que é possível
muito mais e por um período maior. O máximo retorno no menor prazo é uma boa
forma sintética para descrever o objetivo do capital financeiro pelo mundo,
mas, com tudo o que o país tem a oferecer, um investimento mais longo aqui vale
muito a pena.
O Brasil é uma das maiores economias do
planeta. Tem terras férteis e uma grande fronteira de expansão agrícola, que
fazem do país o maior produtor de alimentos do mundo. Minérios e água potável
abundantes, biomas que reúnem reservas naturais de valor econômico e ambiental
incalculáveis. E a rota vai sendo traçada: caminha-se para entregar o pré-sal,
autoriza-se a venda de terras a estrangeiros, eliminando os índios, abrem-se o
espaço aéreo e as fronteiras comerciais. Já não detemos propriedade intelectual
sobre a inesgotável base natural, somos, ao contrário, devedores eternos de
royalties para o capital internacional. A base industrial brasileira, uma das
maiores do mundo, foi sucateada e é vendida a “preço de banana”. Os serviços
públicos de educação e saúde foram disponibilizados para o interesse privado. A
lista é muito longa. O Brasil está barato e a riqueza financeira internacional
cada vez mais ávida para achar ativos que a façam crescer. O país se entrega ao
capital externo, com concessões de vantagens, crédito e segurança cambial.
Em junho de 2016, o jornal
Valor Econômico publicou entrevista com o economista-chefe do banco Santander,
Maurício Molan. Ao responder a pergunta sobre investimento estrangeiro no
Brasil, cravou: “Converso com empresas multinacionais e a pergunta mais comum
é: ‘agora é hora de comprar ativos?’ Eu respondo que sim. O câmbio está em
patamar favorável em termos históricos, os preços dos ativos estão baratos. É
hora de comprar Brasil”.
Exemplo dessa política de
sucateamento e venda de ativos pode ser observado na entrevista que o analista
da Janus Capital Group (gestora americana com quase US$ 200 bilhões em fundos -
Petrobras, Itaú Unibanco, Iochpe-Maxion, Suzano e Marfing fazem parte da
carteira de investimentos no Brasil), Janus Raghoonundon, concedeu ao mesmo
Valor Econômico, em 11 de junho de 2016. Sobre a Petrobras, disparou:
“Realmente acredito que a companhia tem um valor intrínseco e está barata relativamente
a seus ativos. Existe muito potencial para a Petrobras para um investidor de
longo prazo”. Avançando sobre as escolhas do país, soltou: “O Brasil tem que
decidir se pretende aceitar grandes quantidades de companhias estrangeiras
controlando ativos-chave de infraestrutura. E, claro, essas companhias
estrangeiras vão ter que ser compensadas pelo risco que vão tomar”.
As condições
complementares e essenciais são destacadas no início da entrevista de Janus. A
estabilidade política de um novo governo que encaminhará as reformas – assim
espera ele – é que dará estabilidade. Os potenciais investidores não querem ver
as reformas rejeitadas. E quais seriam essas reformas? Nas palavras de Janus:
“Vamos monitorar a aprovação de todas, como a da previdência e dos benefícios
trabalhistas”.
No final do ano passado, uma mudança
constitucional limitou o gasto público pelos próximos 20 anos, o que reduzirá,
na fala do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, o tamanho do Estado pela
metade. A eficácia desse projeto depende de uma reforma que reduza o gasto
previdenciário. Está em curso no Congresso Nacional, desde dezembro de 2016,
proposta de Emenda Constitucional que desmonta todo o sistema de proteção
social do país.
Em março de 2017, o presidente
Michel Temer sancionou a lei que altera o conceito de trabalho temporário,
eliminando o caráter extraordinário desse tipo de contratação, e autoriza a
terceirização ampla e irrestrita. Ao
mesmo tempo, são reduzidos direitos dos trabalhadores e a capacidade de reação.
Com vistas a aumentar
garantias e a autonomia das empresas nas relações de trabalho, agora, na pauta do Congresso
Nacional, já aprovado na Câmara dos Deputados, o violento e destrutivo projeto
de reforma trabalhista. A propositura apresentada pelo deputado Rogério
Marinho, relator da Comissão Especial, embora mais pareça roteiro de filme de
terror, infelizmente, é bem real e procura responder a interesses concretos,
como o indicado pelo analista da Janus.
O projeto, que seguiu para o Senado
Federal, altera mais de 100 artigos e outros 200 dispositivos da CLT -
Consolidação das Leis do Trabalho. Entre outros pontos, a nova versão amplia ao
limite da Constituição a possibilidade de reduzir direitos trabalhistas, por
meio dos sindicatos, dos representantes no local de trabalho não integrantes da
entidade sindical e, diretamente, pelo próprio trabalhador. Estabelece o fim da
ultratividade nas negociações coletivas;
reforça a negociação individual
direta entre empresa e trabalhador e privilegia as negociações por empresa em
detrimento das negociações com entidades sindicais. Acaba com o financiamento
das entidades sindicais e institui as comissões de representação por empresas. Os trabalhadores poderão eleger
os membros dessas comissões, nas quais fica proibida a participação sindical!
Elas substituirão os sindicatos, terão poder de negociação e de quitação de
débitos trabalhistas, que também poderão ser quitados pelo próprio trabalhador
ao longo do ano. Criam-se as bases para o sindicalismo por empresa, sonho neoliberal
do século XXI.
A proposta legaliza diversas práticas de
precarização das condições de trabalho e de flexibilização de formas de
contratação, estabelecendo a submissão real e formal dos trabalhadores às
práticas de redução do custo do trabalho empreendidas pelo capital. No limite,
o trabalhador ganha por hora trabalhada e ponto – trabalho intermitente,
jornada parcial, teletrabalho, home office, terceirização etc. Saúde e
segurança são reduzidas ao custo mínimo e o trabalho explorado ao máximo, com
grávidas em locais insalubres, longas horas extras, jornada de trabalho
estendida para 12 horas etc.
A Justiça do Trabalho, hoje gratuita,
será paga e enquadrada em limites estreitos. Inúmeros instrumentos vão cercear
o acesso do trabalhador a ela e limitar o ônus para as empresas. Muitas regras
definidas pela Organização Internacional do Trabalho, com o projeto, serão
violadas e a Constituição brasileira, rasgada. A CLT será transformada em legislação de proteção das empresas.
O objetivo geral é reduzir ao máximo
toda a proteção do Estado e dos sindicatos aos trabalhadores, destruindo o
marco regulatório que cria um padrão civilizatório nas relações sociais de
produção. Serão dadas condições para uma redução estrutural do custo do
trabalho, garantias de que não haverá pressão redistributiva e de segurança
jurídica dos acordos entre empresas e indivíduos ou com os sindicatos fracos. É
realmente uma proposta ousada, porque escancara uma intenção de recolocar as
“coisas no devido lugar” - nossa subordinação ao interesse internacional,
relações de trabalho flexíveis até atingirem padrões que se aproximem do
trabalho escravo, prática que grassa aqui e em muitos países que concorrem com
nosso sistema produtivo.
Ao invés de um projeto que apoie a
indústria nacional, expanda os resultados da produtividade no país, invente,
inove, agregue valor, incremente os salários, amplie o mercado interno de
consumo, fortaleça nosso desenvolvimento urbano e rural, o projeto deste
governo claramente afirma a opção pela competitividade espúria da precarização,
da insegurança, da flexibilização, do arrocho, do desmantelamento da construção
institucional e regulatória promovida pelos sindicatos e pelo Estado.
No histórico 28 de abril de 2017,
aumentou o número daqueles que, na sociedade brasileira, afirmaram ser
contrários a este projeto encaminhado pelo governo. A luta será longa e a
adversidade, enorme. O desafio será, repudiando esta solução oficial, crescer,
por em prática um projeto de nação capaz de colocar o país na rota do desenvolvimento.
É uma nova utopia, afirmada nesse contexto histórico, que precisa se constituir
em proposta e caminho real. Um projeto pelo qual a nação solidariamente
trabalhará e, de maneira soberana, poderá tomar nas mãos o próprio destino.
Clemente Ganz Lúcio - DIEESE