Manaus - Você sabia que um
cientista ganhador do Prêmio Nobel mora e ensina no Brasil?
Talvez pense que ele é paparicado e ouvido em todas as questões relativas a seu
campo de pesquisas. Pois saiba que não, muito pelo contrário. O Nobel radicado
no Brasil é tratado como uma batata quente pelo establishment porque, há cerca
de 40 anos radicado na Amazônia, é uma voz que clama no deserto (verde),
alertando para a rápida destruição da floresta e suas graves consequências.
Philip Fearnside, 66, cientista
especializado em climatologia baseado em Manaus, vem há décadas advertindo
sobre o risco crescente de catástrofes climáticas, em estudos sempre recebidos
com frieza pelas autoridadesbrasileiras e
com ciclotimia pela imprensa local.
Sentado ao fundo de sua sala no campus do Instituto
Nacional de Pesquisas da Amazônia, o Inpa, em Manaus, Fearnside parece
encoberto por um dilúvio de livros, pastas e documentos soltos que abarrotam as
estantes até o teto fazendo-o parecer pequeno, apesar de seus mais de 1,95m de
altura. Ele me manda entrar ainda de costas para a porta e, quando se volta
para me cumprimentar, o efeito de enchente é aumentado por seu imenso bigode,
que faz lembrar o de Friedrich Nietzsche (ele diz que o autor de “Assim Falou
Zaratustra” não o inspirou).
Daquela sala que parece uma biblioteca babélica,
Fearnside dispara os estudos que fizeram dele um dos dois cientistas mais
citados do mundo em termos de aquecimento global, segundo levantamento da
Thomson-ISI, que mede produção científica. A consistência de suas pesquisas o
levou para o IPCC, o painel de cientistas de todo o mundo reunidos pela ONU
para estudar os efeitos das mudanças climáticas no planeta. Nos próximos dias,
o IPCC divulgará mais um relatório de acompanhamento dos impactos dessas mudanças.
Foi no painel que Fearnside ganhou o Nobel da Paz em 2007, ao lado dos outros
cientistas do IPCC, pelo trabalho do grupo ao alertar sobre os riscos do
aquecimento global.
Queria continuar a estudar aquela região também no
doutorado, na mesma universidade. Tinha feito um grande investimento para
aprender hindi, morara alguns anos em uma pequena vila daquela região, onde
acumulara dados e contatos. Mas depois de iniciada a guerra entre a Índia e o
vizinho Paquistão, este último apoiado pelos Estados Unidos, o cientista
americano se tornou persona non grata no país.
Decidiu então vir para o Brasil, estudar como a
floresta amazônica suporta a ocupação humana. Depois de dois anos, defendeu a
tese nos EUA em 1978, já completamente apaixonado pelo país. Uma palestra no
Inpa levou mais tarde a uma oferta de emprego, e ficou.
Em 36 anos, cresceu e frutificou:
casou com uma pesquisadora brasileira que
também estuda assuntos amazônicos, teve duas filhas, escreveu cerca de 1.800
ensaios, entre livros, conferências e outros itens (dos quais 492 são artigos
científicos e capítulos de livros), participou da formação de dezenas de
pesquisadores. Hoje, apesar do forte sotaque, o cientista está profundamente
aclimatado ao país, podendo passar por brasileiro em um território de tantas
línguas e sotaques como é a Amazônia.
BATATA QUENTE
Foi durante a pesquisa do doutorado, em 1976, que
produziu a primeira “batata quente”: ao estudar assentamentos de colonização do
Incra, encontrou no escritório do órgão mapas que mostravam os alagamentos que
seriam provocados às margens do rio Xingu por uma série de barragens que vinham
sendo planejadas pela ditadura para viabilizar na região um conjunto de usinas
hidrelétricas, entre as quais uma ironicamente chamada Kararaô, que agora é
construída com o nome de Belo Monte.
Ao divulgar o projeto de inundação de vastas áreas
do Xingu, contribuiu no início do movimento que ao final dos anos 1980, no
governo Sarney, juntou contra as barragens índios, ecologistas, políticos
democratas e gente da sociedade civil do mundo todo, como o músico Sting.
Diante da resistência, o presidente Collor arquivou os planos, que o governo
Lula decidiu desarquivar.
Até hoje, Fearnside segue confrontando o discurso
oficial sobre o tema: desde que a então ministra Dilma Rousseff reciclou o
plano dos militares, alegando que o projeto agora seria de uma única
hidrelétrica junto à chamada “Volta Grande” do Xingu, o pesquisador vem
afirmando que nenhum governante, por mais autoritário e maluco, faria uma obra
de tal custo (hoje em torno de R$ 40 bilhões) para deixar 11 mil megawatts de
turbinas paradas durante quatro meses por ano, em função do regime de chuvas da
região.
Ele sempre diz que o governo em breve anunciará
outras barragens. De fato, Belo Monte nem começa a tomar forma e já se fala na
necessidade de represas rio acima para acumularem água e garantir o
funcionamento da hidrelétrica.
Fearnside está há 45 anos alertando para o chamado
“efeito estufa”. Isso foi em seu primeiro emprego, no Parque Nacional dos
Glaciares, em Montana, Estados Unidos, onde ele dava palestras aos turistas
sobre as grandes geleiras da região, na fronteira com o Canadá.
Ali, passou a incluir nas aulas referências ao
aumento da temperatura do planeta, que levaria ao derretimento do gelo no alto
das montanhas em algumas décadas. Seu discurso parecia inverossímil, mas as palestras
do jovem de 21 anos ainda não completaram meio século e as geleiras de Montana
estão desaparecendo: hoje os estudiosos dizem que elas só vão durar mais dez
anos.
BOLA DE CRISTAL
Desde a primeira previsão, outras tantas se
sucederam. Na Amazônia, ainda nos anos 1980, Fearnside escreveu que se nada
fosse feito, a floresta como sistema climático iria desaparecer em 50 anos.
Passaram-se 25, o desmatamento continuou e vários fenômenos associados também.
O principal deles é a redução da umidade naquela área, porque o desmatamento
faz com que a água das chuvas não seja retida. O ar se torna mais seco: na
época da estiagem, meados do ano, a umidade relativa em Manaus já chega a cair
abaixo de 20%, como nos desertos. Outra consequência do desmatamento é que a água
das chuvas escorre diretamente para a calha dos rios, provocando enchentes
maiores.
Uma terceira consequência do desmatamento em grande
escala da região, que Fearnside detalhou em 2004, mostra que menos água da
Amazônia seria transportada pelos ventos para o Sudeste durante a temporada de
chuvas, o que reduziria a água das chuvas de verão nos reservatórios de São
Paulo.
Bingo! Este ano, o Rio Madeira, principal afluente
do Amazonas, vive a maior cheia em décadas e a água invade as margens deixando
milhares de pessoas sob enchente. Ao mesmo tempo, reservatórios de São Paulo se
encontram nos níveis mais baixos da história depois do mais seco dos verões,
deixando milhões sem água. “O pior é que essa água só é transportada para São
Paulo no verão, no resto do ano, o transporte cai. Se não encher os
reservatórios na temporada de chuvas, só no ano seguinte”, explica.
Pergunto se ele não se assusta diante dos estudos
que indicam a besta do Apocalipse ambiental chegando a galope: “Não sei se a
palavra é essa. O importante é tomar decisões antes dos grandes desastres, não
depois”.
Insisto: você já viu um sistema econômico se
autocorrigir para evitar uma catástrofe? Ele responde com otimismo: “O buraco
de ozônio é um exemplo de mudança. O protocolo de Montreal reverteu o problema.
Está certo que foi mais fácil, pois as empresas que vendiam o CFC passaram a
fornecer novos compostos que o substituíram”. Já o aquecimento global afeta
várias das maiores empresas do mundo, como as petroleiras e as cadeias
produtivas relacionadas.
Ao se despedir, procura transmitir sua determinação
otimista: “O importante é não ser fatalista. A declaração de que o mundo vai
acabar não é construtiva. Se você pensa que tudo está perdido, não faz nada e a
profecia se realiza”. Não consigo deixar de pensar: “Assim falou Fearnside”.
Foi quase
por acaso que Fearnside, ainda um jovem pesquisador de 26 anos, veio fazer no
Brasil a pesquisa para seu doutorado, em 1974. No mestrado, que ele defendeu na
Universidade de Michigan, tinha estudado a capacidade do ambiente do Rajastão,
na Índia, suportar a ocupação humana que se intensificava com a construção de
barragens para irrigação e produção de eletricidade.
Fonte: Folha de São Paulo.
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